terça-feira, 4 de outubro de 2011

"Daniel Colin veio pra ficar", por Luciano Alabarse*


"Não sou daqueles que se rasgam em elogios precipitados quando o assunto é trajetória teatral. Fernanda Montenegro tem razão ao dividir a carreira cênica em três grandes atos, o primeiro deles com mais ou menos dez anos de duração, tempo inicial onde alguém diz a que veio e se veio para ficar. O segundo, conforme Fernandona, é o espaço para consolidar seu nome dentro da profissão e, por fim, o último e mais duradouro dos três períodos, o de fazer o seu teatro com profundidade, serenidade e segurança. Muitos talentos surgem e desaparecem sem atingir a etapa dessa maturidade - porque o teatro é como um funil apertado testando os fortes, os de fé e vocação, aqueles que não desanimam. Todos sabemos que fazer teatro de verdade é uma pedreira – e não estou falando somente do Rio Grande do Sul. Em todos os lugares, inclusive com realidades econômicas diferentes, o processo é muito parecido.


Essa introdução é porque quero registrar a alegria de perceber que estamos, nós que já fazemos teatro há alguns anos, ganhando um grande companheiro de ribalta, a quem dedico a coluna de hoje: Daniel Colin. Coração e cérebro do grupo "Teatro Sarcaustico", Daniel se mostra ungido com o fogo sagrado dos grandes talentos, dos que serão lapidados pela própria experiência na carreira, dos que têm talento, humildade e disciplina quando o assunto é ouvir/assimilar/ crescer e amadurecer dentro do ofício. Fui ver seu último trabalho, "Breves Entrevistas com Homens Hediondos", logo depois da estréia do espetáculo e dois dias depois, em função do Porto Alegre em Cena, nos encontramos, e foi bonita e sincera a vontade dele de me ouvir sobre seu trabalho. Contei que só não queria parecer o Cláudio Heemann, de saudosa memória, que cada vez que me via, me elogiava e, ao mesmo tempo, me enchia de críticas, falando do meu talento desordenamente excessivo. Eu ouvia o Cláudio, com e sem paciência, pensando: ai, meu deus, que velho chato! (risos) Nada como um ano depois do outro. Hoje entendo bem melhor suas ponderações e, enfim, partilho de muitas de suas idéias - que antes me pareciam coisas de gente careta. Não eram. Por que escrevo sobre o Daniel e lembro o Cláudio? Porque com o seu inegável talento, Daniel, muitas vezes, me parece um cavalo selvagem, solto e reluzente na pradaria, sem admitir rédeas. Ele será o seu melhor domador, tenho certeza, e vai conduzir sua criação artística para o rumo que quiser.
Voltando à montagem: a peça é um soco no rim, daquelas que eu gosto e procuro no teatro. Adaptada a partir dos contos de David Foster Wallace, o primeiro mérito da encenação é esse, o de oferecer um texto inteligente, contundente e desafiador ao público. Um dos mais brilhantes nomes da literatura americana, companheiro de geração de Jonathan Franzen, Wallace se suicidou em 2008 e deixou um buraco semelhante ao causado, no Brasil, quando do suicídio de Torquato Neto. Inteligentes demais, sensíveis demais, furiosos demais, ambos cansaram e partiram. Ainda bem que suas obras ficaram.
Junto com Daniel, estão em cena, Rossendo Rodrigues, Guadalupe Casal e Ricardo Zigomático, jovens parceiros dessa empreitada teatral bem-sucedida. O grupo estreou a peça no Teatro de Arena e as dimensões do teatro, para mim, por vezes, oprimem a concepção do espetáculo - que pediria um teatro maior, para respirar mais e melhor.
Composto por cenas de contos diferentes, todos se revezam nas funções de direção e atuação, revelando um inventário de atrocidades comportamentais contemporâneas. Fragmentado, o espetáculo vai num crescendo e atinge, em sua última cena, um patamar de extraordinária eficácia teatral. Ali, já esgotados o uso vertiginoso do espaço, Daniel está sozinho. Ele, ou seja, um ator (e que extraordinário ator, meu Deus!), um texto perturbador e nós, o público. O quanto basta, e tão raro, para que o milagre do teatro aconteça em sua plenitude. Saí boquiaberto pela noite gelada, tão mexido que sonhei com o texto, um sonho-pesadelo devastador. Acordei às quatro da manhã, furioso com o Daniel por perturbar meu rico sono. Já contei isso pra ele, e é verdade. O impacto da sua interpretação, aliado aquele texto dúbio e feroz, invadiram minha noite e me comprovou, mais uma vez, que o melhor do teatro acontece quando a essência, para além do efeito, é o que é valorizado em cena.
Se você não viu, e gosta de teatro, não perca "Breves Entrevistas com Homens Hediondos" de jeito nenhum. Depois me diga se não tenho razão. Uma coisa é certa: Daniel Colin veio para ficar."


(*) Luciano Alabarse - Um dos mais renomados diretores teatrais do Rio Grande do Sul, Luciano Alabarse nasceu em Porto Alegre, em 1953 e entrou no curso de Licenciatura em Artes Cênicas, em 1972 quando errou o preenchimento do formulário para o vestibular na UFRGS, fato que conta às gargalhadas, creditando aos deuses do teatro sua "falha trágica". De lá para cá, montou os mais importantes autores da dramaturgia ocidental, entre eles Sófocles e Eurípedes. Sua primeira direção já antecipava seu caminho no palco: "O Canto do Cisne", de Tchecov. Em seu currículo, estão Luigi Pirandello, William Shakespeare e Eugene O´Neil. Ao lado de grandes clássicos mundialmente conhecidos, montou regularmente autores gaúchos, como Lya Luft (Reunião de Família), Caio Fernando Abreu (Pode ser que seja só o leiteiro lá fora) e João Gilberto Noll (Hotel Atlântico). Na música, lançou nomes como Adriana Calcanhotto e Nelson Coelho de Castro. Detentor de todos os prêmios importantes do teatro gaúcho, Luciano estreou em maio de 2011, "Ifigênia em Áulis + Agamenon", onde reuniu duas das mais importantes peças da tragédia grega.


Post completo no Jornal Usina do Porto, aqui.

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