terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Cultura ruim de bilheteria, o que fazer com ela?


A notícia rendeu muitas manchetes, mas pouca reflexão. No final do ano passado a turnê de João Gilberto entrou em colapso pelo baixo desempenho da sua bilheteria. Porém, não foi exatamente o interesse do público que faltou ao João e sim um empreendimento viável. Sem patrocinadores para cobrir os principais custos da excursão os produtores não acharam uma equação capaz de oferecer preços acessíveis ao vasto público do genial precursor da bossa nova. Resultado, cancelamentos e frustração de milhares de fãs. O que teria acontecido?
Há teorias para todos os gostos e certamente a mais sedutora é a que enxerga nas leis de incentivo fiscal à cultura do país a origem de todos os problemas do João Gilberto – e da produção cultura brasileira- por entender que esses mecanismos inflacionaram os custos do setor. A tese é bastante popular na mídia especializada e até entre alguns produtores culturais.
Vale a pena testar a teoria a partir desse caso concreto: que itens, infláveis em seus custos, haveria de tão decisivos nas apresentações do João? Como se sabe, sóbrias audições constituídas de três elementos sobre o palco, dois deles feitos madeira.
A percepção de inchaço dos custos na produção por culpa das leis de incentivo tem origem num modelo antigo de trabalho no qual profissionais de publicidade e de TV usavam as horas livres para colaborar voluntariamente nos projetos de amigos em produções freqüentemente marcadas por cronogramas caóticos. Com a chegada das leis de incentivo na cultura essa prática diminuiu abrindo espaço para a profissionalização, o que, obviamente, encareceu certos itens. Contudo, qualquer produtor experiente sabe que os cachês da equipe têm baixo peso relativo na composição de custos de projeto cultural, em especial, no caso de turnês.
Grosso modo, os custos pesados de uma produção recairão principalmente na compra da mídia e no aluguel da casa de espetáculo, itens que consumirão algo em torno de 50% das receitas. Em seguida, virão os gatos com locação de equipamentos, transporte aéreo e terrestre, hospedagem, alimentação. Pois bem, alguém acreditaria que companhias aéreas, departamentos comerciais de jornais, rede de hotéis, transportadoras, remarcariam os seus preços diante da súbita descoberta de que estão diante de um projeto habilitado na Lei Rouanet? A tese é primária.
O que parece decisivo no episódio João Gilberto é a gradual decadência da bilheteria como elemento de sustentação econômica dos eventos artísticos culturais, fenômeno crescente na industria cultural brasileira. Sabemos que o caso JG não é um acontecimento isolado. É extensa a lista de grandes nomes da MPB que não conseguem mais pagar as contas de seus shows apenas com a venda de ingressos e se é assim com superstars, imagine o tamanho do problema entre os novos talentos.
No teatro a impotências da bilheteria é um dado mais antigo. Há décadas as peças não cobrem os gastos de uma companhia profissional, mesmo com a casa cheia em todas as suas sessões. Indo para a chamada alta cultura a situação só piora.  Os números divulgados pela Fundação OSESP mostram que a venda de ingressos, e de assinaturas, correspondem a cerca de 8% dos gastos totais da orquestra e no MASP, mais importante museu de arte de São Paulo, a receita proveniente da visitação pública talvez não pague a conta de água. Em todos esses casos o socorro vem do dinheiro público, por meio de dotações diretas ou dos mecanismos de renúncia fiscal.
O que fazer? Dissolver as nossas sinfônicas e fechar os museus? Reduzir o teatro brasileiro ao gênero “stand-up comedy” com os seus custos otimizados? Isso certamente pouparia grandes somas ao erário. Entretanto, seria mesmo economicamente vantajoso? Não há cinismo nesta pergunta, proponho examinar essa hipótese sem preconceitos e descartando desde já aquela chatíssima coleção de argumentos em torno da importância intrínseca da cultura.
Por exemplo, pensemos no caso da maior festa popular do planeta, o Carnaval carioca: mesmo com a lotação do sambódromo esgotada em todos os dias de desfile a arrecadação de bilheteria não cobriria sequer 20% das somas consumidas nos barracões. Fora dessa conta, obviamente, os custos operacionais do evento como policiamento, emergência, energia elétrica e manutenção do espaço, todos a cargo do poder público que também realiza repasses de recursos de forma direta.
Então, devemos concluir que a maior espetáculo da terra dá prejuízo? De modo algum. Segundo a RioTur, em 2011 a cidade do Rio faturou cerca de R$ 1,3 bilhão nos dias de folia ao tirar de casa, ou trazer de longe, mais de 5 milhões de pessoas que circularam pela cidade maravilhosa gastando, gerando impostos, criando empregos. A lotação dos hotéis bateu a incrível marca de 96% e cerca de 3 mil jornalistas de todas as nacionalidades fizeram chegar aos quatro cantos do globo a exuberância do espetáculo. Nesse caso, para qual ponto da planilha devemos olhar? Para a coluna  que registra o superávit da cidade ou para o campo ao lado que aponta o déficit dos barracões?
O problema no debate em torno do financiamento da produção cultural é a ambivalência. A engenhosa noção capitalista que faz sucesso na Marques de Sapucaí e nos mais adiantados centros mundiais, não vale quando o assunto é a aquisição de acervos, salário de musico, locação de câmera, produção de espetáculos. Para esses casos o que prevalece mesmo é a lógica de contabilidade de padaria.
Em 2012, a previsão de gastos no Brasil com incentivo fiscal é de R$ 146 bilhões. Destes, ao redor de 1% será reservado à cultura. Nas raras oportunidades em que a mídia dá destaque aos incentivos de outros setores, o que surge são enunciados do tipo “ação de desenvolvimento dirigido”, “programa de inovação tecnológica”, expressões com as quais estamos todos de concordo. Em contraponto, há quase uma década os benefícios fiscais da área artística são tratados rotineiramente como desperdício de dinheiro público. Ao lado do habitual zelo da imprensa com a coisa pública, não há como ignorar a parcela de preconceito contra a cultura latejando sob essa ambiguidade.
*Publicado originalmente na Folha de S. Paulo

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